Publicado às 9h10
Agência Estado
A advogada Camila Makarausky, de 27 anos, fugiu de São Paulo pela primeira vez há três meses, mas isso logo virou rotina. Desde agosto, ela se refugia da “loucura” da metrópole em plena Vila Pompeia, na zona oeste da capital. Com outras três mulheres da mesma faixa etária, ela dedica três horas semanais para se desconectar e trocar a tensão cotidiana pela cerâmica.
“Morei quase sempre no interior do Paraná. Desde que me mudei para São Paulo (em 2014), sentia falta de um tempo só para mim, para ficar mais conectada com o meu interior, comigo mesma”, explica. “A oficina é um dos melhores momentos da semana. É quando sento, paro e simplesmente ignoro todo o mundo por três horas.”
Milenar, a criação em argila ganhou novo fôlego nos últimos anos e, mais recentemente, entre um público antes improvável: os jovens adultos. Para esse grupo, a técnica é uma forma de desacelerar, em parte por ser uma atividade manual e criativa, mas também por exigir dedicação e tempo para alcançar o resultado desejado.
Entre moldar, secar, lixar, esmaltar e fazer duas queimas (que duram ao menos oito horas cada), uma peça leva em média três semanas para ficar pronta. O primeiro contato com a técnica, no entanto, costuma ocorrer por meio de workshops rápidos, no qual apenas a primeira etapa do processo é realizada, enquanto o restante é executado pelo professor e, depois, entregue aos participantes.
“A demanda tem crescido muito. Chama a atenção o quanto o pessoal mais jovem está procurando, tem essa necessidade interna da busca de si”, comenta a arteterapeuta Regina Chiesa, de 65 anos. “Na época em que eu comecei na cerâmica, tinha uma questão da estética, da perfeição, era muito rigoroso. Hoje, tem uma abertura para as pessoas criarem mais, se expressarem mais”, compara a autora do livro “O Diálogo com o Barro, o Encontro com o Criativo” (Editora Casa do Psicólogo).
Segundo a designer e ceramista Fernanda Giaccio, de 29 anos, do ateliê Noni SP, grande parte dos frequentadores das suas oficinas rápidas se inscreve para outros cursos de curta duração, que custam em média R$ 200. “A maioria é sempre de mulheres entre 22 e 35 anos, com formação em Humanas ou Artes, designers, arquitetos, publicitários, muita gente que trabalha em agência”, diz.
A demanda é tão grande que Fernanda passou neste ano a reservar três datas mensais para lecionar workshops, além da noite em que tem uma turma semanal. No caso dela, a maioria dos interessados começa como seguidor dos perfis do ateliê nas redes sociais e, depois, se inscreve em um curso.
“Criou-se uma referência de que o handmade (feito à mão) é legal. É um pessoal que quer aprender com quem faz, que segue a marca. É como se eles quisessem um pouco da nossa identidade também”, comenta.
Este é o caso, por exemplo, da designer gráfica Amanda Rodrigues de Oliveira, de 25 anos. “Achava lindo (o perfil da Noni SP). Em dezembro, li um post de uma aula pocket. Me inscrevi só para ver se tinha a ver, se conseguia fazer, porque achava que era super impossível, mas consegui produzir cinco peças em um dia só”, lembra.
Com quase um ano de prática, Amanda encheu a própria casa (e a de amigos e familiares) com canecas, porta-velas e vasos de cerâmica – embora nunca tenha comprado cerâmicas. “Passo o dia inteiro na frente do computador. Só de pegar no barro e sentir o cheiro de terra molhada já é um momento relaxante. Esqueço do trabalho e dos problemas de casa.”
Presente
A publicitária Maria Carolina Gonçalves, de 23 anos, por exemplo, nem fez o primeiro curso de cerâmica (marcado para dezembro) e já planeja o destino das peças que criará. “Sempre gostei de trabalhos manuais. Quando criança, fazia pulseirinha para vender na escola. Também gosto de presentear com objetos artesanais. A cerâmica seria mais uma opção.”
Por ser feito por um público mais jovem, o resultado dos trabalhos foge do tradicional, com imagens de rostos, animais e frases de efeito. Consultora de direitos humanos e sustentabilidade, Ana Letícia Salla, de 35 anos, conheceu a cerâmica na infância, quando acompanhava a mãe em aulas da técnica. “Mostro para ela as peças que faço e ela mostra as peças daquela época, até está com vontade de voltar”, diz.
Dentro desse cenário, a ceramista Cristina Kim, de 33 anos, destaca o papel dos bazares e das feiras de design, que também ganharam espaço nos últimos anos, a exemplo da Jardim Secreto Fair e da Feira na Rosenbaum.
“As pessoas estão procurando peças únicas, exclusivas, sob medida”, conta Cristina, que trocou a arquitetura pela cerâmica há cinco anos. “No escritório, a gente acaba não conseguindo ver o processo todo, muitas vezes ficamos com uma parte. Mesmo em escala menor, na cerâmica eu domino tudo.”
Sentido
Consumir não faz mais sentido para uma parcela da população jovem, afirma o professor de Sociologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie Rogério Baptistini. Com formação superior, renda alta e acesso global à informação, esse público jovem adulto, especialmente de até 25 anos, das grandes cidades, está “buscando uma vida mais orgânica e mais plena de sentido, que não seja apenas baseada na instantaneidade do momento”, conforme aponta o professor. “É uma tendência global”, pontua Baptistini.
De acordo com o professor, essa mudança ocorre graças às inovações tecnológicas, embora esteja atrelada ao resgate de atividades manuais. “Estamos vivendo, de fato, uma verdadeira revolução de comportamento”, diz ele.
“É um momento de síntese da humanidade. O século 21 para nós é uma espécie de momento de revolução, uma revolução de costumes, de experiências”, diz. “Há uma espécie de esgotamento das instituições, de tudo o que vem do século 19, da Segunda Revolução Industrial. Esta geração está fazendo o primeiro balanço dessa vida nova. Não é uma revolução típica.”
“Por mais que a juventude vire as costas e dê um solene não à dinâmica acelerada do tempo, é a tecnologia, a robotização, a rede social, a aceleração do tempo da internet que propicia viver uma vida sustentável, que nos libera das atividades corriqueiras”, pondera o professor da Mackenzie.
Uso do tempo
Ao estar atrelada a uma camada mais favorecida da população, esse modo de vida ainda tem pouca influência entre as classes C, D e E. “É uma nova estratificação que reflete no comportamento dos jovens. O uso do tempo segregou as populações”, comenta. “Nem todos podem consumir, mas quem pode consumir fica cansado, entediado, nada faz sentido e, por isso, busca experiências mais reais”, comenta.
“Não há como não concordar que a geração do século 20 legou um mundo ruim, com desemprego estrutural, de conflitos internacionais, de problemas ambientais sério. E essa meninada está tentando ressignificar esse mundo.”
Para entender
“Antes do plástico, do alumínio, era só o que existia”, pontua a professora de Cerâmica da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Lalada Dalglish. Deixada em desuso pelo surgimento de outros materiais, a cerâmica começou a ser revalorizada no Brasil após os anos 1940 e 1950, com a redescoberta do artesanato do Nordeste, e, depois dos anos 1970, pela influência japonesa. Mais do que fazer tijolo e pratos de porcelana, a argila é usada na produção de equipamentos altamente tecnológicos, como revestimento de foguetes e em trilhos de trens-bala. E aqui ganhou uma linguagem própria. “O brasileiro é muito livre. O que no Japão é técnica tradicional, impensável de se alterar, aqui se usa torno, se faz prato na mão, daí desenha um pássaro.”
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