Publicado às 9h
Folha de SP
Péssimo atendimento. Estava com dores fortes no peito e na cabeça e fiquei oito horas esperando para uma médica receitar um Buscopan [analgésico] em gotas”, diz Daniel, 35, no pronto-socorro da Santa Casa de São Paulo (região central).
A 10 km dali, no Hospital do Mandaqui (zona norte), as reclamações são parecidas. A demora no pronto-socorro chega a dez horas e há cerca de 40 pacientes deitados em macas.
Celly, 54, nem maca conseguiu. Precisa de um cateterismo, mas não há leito. Espera uma vaga sentada na cadeira.
Um dos serviços mais mal avaliados do SUS, unidades de urgências e emergências estão adotando um sistema de gestão, chamado Lean, inspirado na indústria automobilística para reduzir a superlotação.
No SUS, pode ser empregado, por exemplo, na organização de fluxos de pacientes, separando os de maior dos de menor gravidade ainda na sala de espera. Os de baixo risco, após o atendimento inicial são encaminhados para a atenção básica —que pode atender até 80% dos casos.
Já os mais graves, após a assistência inicial, seguem para internação ou realização de exames e procedimentos. Isso agiliza o atendimento e faz com que a pessoa se sinta cuidada e não apenas sentada na sala de espera.
Com o método, o hospital de urgências de Goiânia (Hugol) reduziu o tempo médio do atendimento na emergência em 55% —de 7,35 horas para 3,27 horas seis meses depois.
Recente pesquisa Datafolha encomendada pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) mostra que só 27% dos atendimentos dos prontos-socorros são avaliados como bons ou ótimos pela população. A demora é a principal queixa.
No pronto-socorro central da Santa Casa de São Paulo, o maior da capital, há uma demora média de 208 minutos entre a chegada e a consulta.
Quase metade do tempo (cem minutos) é gasto na classificação de risco (grau de gravidade). “Isso pode ser reduzido a dez minutos”, diz Welfane Cordeiro Júnior, coordenador médico do projeto.
No Hugol, foi criada uma unidade de decisão clínica. Em quatro horas, o médico do PS precisa decidir se internar ou libera o paciente.
“Tem uma funcionária na equipe para monitorar isso. Se há risco de atraso, ela diz: ‘Doutora, tem um paciente que está esperando há três horas’. Se falta exame, ela vai atrás, providencia”, explica Ana Carolina Brasil, gerente do projeto Lean.
Outra mudança foi evitar que o paciente fique se deslocando de sala em sala. O médico e a enfermeira vão até ele.
O desafio maior, porém, é o destino de quem precisa de uma cirurgia e que passa dias na maca no corredor à espera de um leito.
“Os PSs viraram enfermarias, isso está naturalizado. Com mais de 12 horas internado no PS, aumenta o risco da mortalidade [por infecções, por exemplo]. Corredor não é leito”, diz Cordeiro Júnior.
Na Santa Casa de São Paulo, a desorganização respondia por parte da dificuldade na liberação de leitos.
Antonio Penteado Mendonça, provedor da instituição, diz que até 2017 a desconexão na área cirúrgica era apavorante. “O médico marcava a cirurgia e esquecia de avisar o cara do exame de imagem. Ou quando fazia isso, esquecia de avisar o anestesista ou ainda não agendava o horário da sala de cirurgia. Morre gente por causa disso”, conta.
Segundo ele, o Lean mudou a cultura do hospital. “A gente descobriu que pode ter fluxos organizados e padronizados.”
A criação de uma central de agendamento cirúrgico é uma das mudanças. A outra foi estabelecer um horário de alta. O médico demorava horas, às vezes dias, para oficializá-la. “Agilizando isso, o leito gira mais rapidamente e a gente interna o paciente que está no PS”, diz Ana Carolina. A ideia é que a programação da alta comece na internação.
Porém, o modelo enfrenta a resistência do corpo clínico em aderir às mudanças de fluxos e processos internos.
“A gente tem tentado envolver cada vez mais pessoas e mostrar os benefícios, os dados e pedir que reflitam sobre as possibilidades de mudanças”, diz Rogério Pecchini, diretor técnico da Santa Casa.
Liderança e engajamento da equipe são partes essenciais para o sucesso do projeto, segundo Francisco Figueiredo, secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde.
Mas não é só isso. Para Walter Cintra Júnior, coordenador de administração hospitalar da Fundação Getúlio Vargas, são necessárias também intervenções, como a disponibilidade de insumos e equipes.
Segundo Cordeiro Júnior, a falta de materiais para as cirurgias é um dos entraves. No Hospital de Messejana (CE), por exemplo, a redução da superlotação foi de apenas 7%.
“O hospital é de administração direta e referência na área cardiovascular. Houve falta de fio cirúrgico e as cirurgias foram interrompidas. Os pacientes não giravam [não houve liberação de leitos]. Isso tudo influencia no resultado.”
O giro de leitos também é prejudicado pela ocupação de parte deles por pacientes que não precisariam estar ali. São doentes graves, mas que estão estabilizados e que poderiam estar em unidades de cuidados paliativos, de transição ou de longa permanência.
Na Santa Casa, de 10% a 15% dos 40 pacientes na UTI de adulto estão nessa situação.
Francisco Figueiredo, do ministério, diz que prepara um projeto de desospitalização no SUS. “Com o rápido envelhecimento populacional, as unidades hospitalares ficarão ainda mais sobrecarregadas e vamos precisar de outras estruturas multiprofissionais.”
GESTORES TEMEM QUE EFICIÊNCIA GERE MAIOR PROCURA NAS UNIDADES
Um dos efeitos colaterais temidos pelos gestores de hospitais que estão adotando o sistema de gestão Lean nas emergências é que a eficiência gerada atraia mais usuários.
“Se os hospitais ofertam um serviço diferenciado, rápido e eficiente, acabam sendo mais procurados. Isso é natural. Aconteceu o Hugol [hospital de Goiânia que teve redução de 62% da superlotação]”, diz Welfane Cordeiro Júnior, coordenador médico do projeto.
Por mais paradoxal que pareça, no SUS isso é um problema pois os hospitais têm contratos fixos e não recebem pelos atendimentos feitos além dos previamente acordados.
O provedor da Santa Casa, Antonio Penteado Mendonça, é um dos que temem o aumento da procura com a melhoria do PS. Por ser o único “porta aberta” da cidade, o hospital já atende além da capacidade.
“Em março do ano passado a gente fazia de 700 a 800 cirurgias por mês. Aí metemos o pé no acelerador e fechamos dezembro com 2.360. Em janeiro, estávamos quebrados”, diz Mendonça, para quem os resultados do Lean precisam coincidir com o equilíbrio orçamentário das instituições.
“Eu espero que quando isso se tornar uma prática rotineira no SUS, a forma de remuneração seja mudada e passe a valorizar os resultados.”
A mudança do modelo de remuneração dos hospitais, que tem sido discutida no sistema suplementar, no entanto, ainda não encontrou eco nos hospitais que prestam serviços ao sistema público.
Segundo Cordeiro Júnior, os resultados mostram que é possível otimizar muito do que se gasta na assistência, mas, é necessário discutir com toda a rede de serviços.
A equipe do Sírio-Libanês responsável pelo Lean e o Conass (conselho dos secretários estaduais de saúde) estão negociando uma parceria para estender a metodologia para mais hospitais de forma que a melhoria do atendimento seja em rede e não só mérito de unidades isoladas.
Francisco Figueiredo, do Ministério da Saúde, diz que já é esperado que um serviço qualificado gere mais demanda, mas que a intenção é que os bons resultados sejam ampliados para toda a rede.
“Queremos várias portas qualificadas. Queremos contaminar toda a rede”, afirma.
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