Publicado às 9h10
Folha de SP
“Faça-se a luz! E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas.” Seja como metáfora, seja no sentido literal, a luz é descrita no Gênesis, o primeiro livro da Bíblia, como algo essencial desde a criação do mundo.
Mas foi só agora que a ciência criminal conseguiu mensurar o quanto a luz é capaz de reduzir crimes em espaços públicos. E, ainda assim, muito gestor municipal desconhece ou finge desconhecer sua importância para a segurança pública.
Se a escuridão favorece o fator surpresa da ação criminosa e dificulta a identificação de sua autoria, a principal hipótese é que o aumento da visibilidade permitido pela iluminação pública acabaria com essas vantagens. Sob a luz, se tornaria mais arriscado, portanto, cometer um crime.
Um experimento realizado em parceria com a polícia metropolitana de Nova York apontou para uma redução de 36% nos crimes ocorridos durante a noite em ruas que receberam iluminação pública extra por um período de seis meses, entre março e agosto de 2016.
Os pesquisadores do Bureau Nacional de Pesquisa Econômica, nos EUA, sortearam 40 ruas com habitações de interesse social de um universo de 80. Todas eram consideradas prioritárias pela polícia de NY porque nelas a incidência de crimes não havia declinado nos últimos anos, como no restante da cidade.
As localidades sorteadas receberam mais de 300 torres de luz distribuídas de acordo com o tamanho da área que deveria ser iluminada.
A partir de dados prévios de crimes como homicídio, roubo e furto ocorridos nestas localidades, a equipe liderada pelo economista Aaron Chalfin, da Universidade da Pensilvânia, nos EUA, detectou redução na taxa desses crimes que variou de 36% a 60%.
Como os crimes noturnos representam 11% do total de ações criminosas dessas localidades, trata-se, na perspectiva mais conservadora, de uma diminuição de aproximadamente 4% no total dos crimes de rua desses endereços.
“Para a literatura de crime, 4% de redução é um bom resultado”, explica o economista e professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) Paulo Arvate. Ele é coautor de um estudo brasileiro que apontou para redução nos homicídios nas cidades do Norte e Nordeste que receberam iluminação elétrica por meio do programa Luz para Todos.
Aos leigos para quem essa redução possa parecer modesta, os pesquisadores americanos lembram que diminuição semelhante seria esperada no caso de aumento de 10% no número de policiais nas ruas. E isso implicaria um custo muito mais alto aos cofres públicos.
“Todo mundo já sabia que iluminar os espaços teria esse tipo de impacto na criminalidade. Agora, o resultado existe e o impacto é grande. E o estudo ainda mostra que a relação custo-benefício da iluminação pública é muito relevante”, avalia Arvate.
A relação entre o ambiente e o comportamento humanos, incluídas aí as atividades fora da lei, tem sido objeto de estudos em áreas tão diversas como economia, psicologia, saúde e sociologia.
Enquanto a criminologia clássica se preocupa com o crime depois que ele ocorreu, intervenções nos ambientes onde crimes ocorrem são de caráter preventivo e envolvem alguns mandamentos da infraestrutura urbana para evitar que crimes aconteçam.
Elas emergiram a partir dos anos 1970 como alternativa e complemento à política de encarceramento, cuja premissa é incapacitar o criminoso atrás das grades. Sua baixa eficiência no combate ao crime, defendem alguns pesquisadores, seria expressa nos altos índices de reincidência dos egressos do sistema prisional. Soltos, voltam a cometer crimes e retornam para a prisão. O melhor, portanto, seria prevenir.
Segundo a italiana Laura Chioda, pesquisadora sênior em economia do Banco Mundial, as intervenções na infraestrutura urbana podem ser de baixo custo, como no caso da iluminação pública, mas precisam ser mais e melhor estudadas.
Muitos estudos encontraram correlação entre mudanças no ambiente urbano e redução de crimes, sem necessariamente estabelecer se uma coisa é causa da outra ou vice-versa. “Este tipo de relação não é suficiente para pautar políticas públicas de segurança”, diz Chioda.
A famosa teoria das janelas quebradas, de 1982, segundo a qual um ambiente em desordem física (a tal janela quebrada) atrairia desordens sociais, como crimes e contravenções, nunca foi testada.
“Apesar da sua popularidade, as evidências que sustentam essa teoria são extremamente limitadas.”
O experimento com iluminação pública em Nova York seria o primeiro a estabelecer uma relação de causalidade, confiável e mensurada estatisticamente, entre mais iluminação e menos crime.
Ainda que não sejam absolutamente conclusivos, estudos recentes estabeleceram uma forte relação entre a transformação de terrenos baldios em praças e parques e a redução dos crimes de seu entorno.
O mesmo ocorreu em relação a casa e edificações abandonadas na Filadélfia que, por lei, precisaram ser requalificadas e conservadas, diminuindo a ocorrência de crimes nas redondezas.
“Algumas intervenções urbanas demonstraram não reduzir o crime imediatamente mas ter efeito psicológico na percepção de segurança, o que aumenta a sensação de bem-estar da população”, afirma Chioda, para quem este efeito é bastante importante e influi também na atividade criminal.
Para ela, ainda que não reduza diretamente os índices de criminalidade, muitas intervenções na infraestrutura urbana aumentam a qualidade de vida e, indiretamente, interferem na incidência da atividade criminal.
“Se você vive com medo independente de um crime ocorrer ou não com você, há perda de bem-estar para o indivíduo, sua família e toda a sociedade. No longo prazo, quanto mais segura eu me sentir, mais estaria disposta a reportar um crime para as autoridades policiais. E isso tenderia a aumentar o efeito de dissuasão dos criminosos.”
Os 6 mandamentos da cidade segura
- Coordenarás patrulhas policiais a partir dos locais onde estatisticamente ocorrem mais crimes, chamados de “hot spots”
- Manterás todas as ruas e becos, passarelas e vielas bem iluminados durante a noite
- Farás a manutenção periódica dos espaços públicos, sua sinalização e vegetação
- Transformarás terrenos baldios em áreas verdes e exigirás o reparo e a manutenção de imóveis deteriorados por seus proprietários
- Terás construções com janelas voltadas para a rua, para promover a vigilância natural do espaço público e vice-versa
- Misturarás diferentes usos numa mesma região (residencial, comercial e de lazer) para manter algum movimento nas ruas 24 horas por dia
Três intervenções urbanas que podem reduzir crimes
Estudos apontam como ambiente urbano influi na ocorrência ou não de roubos, furtos e homicídios
O quê?
- Iluminação pública
- Áreas verdes
- Casas e construções abandonadas
Como?
- Espaços que recebem iluminação apresentam redução em homicídios e roubos
- O entorno de terrenos da Filadélfia (EUA) transformados em áreas verdes, com gramado, plantas e árvores, tiveram redução de crimes a mão armada e de vandalismo
- Edificações abandonadas, associadas à desordem, tendem a aumentar os crimes em seu entorno. Restaurá-las e requalificá-las teve efeito oposto à Filadélfia: reduziu a incidência de crimes
Fontes: Kondo et al (2015), “A Difference-In-Differences Study of the Effects of a New Abandoned Building Remediation Strategy on Safety”; Branas et al (2011), “A Difference-In-Differences Analysis of Health, Safety and Greening Vacant Urban Space”; Jacobs (1961) The Death and Life of Great American Cities; Newman (1973). Defensible Space: Crime Prevention Through Urban Design.
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