Publicado em 13/02/2021 às 09h
Por Redação/via Nas ruas (Tab UOL)
Toda mudança dá trabalho. Por isso, Leonardo decidiu se antecipar: um dia antes de encher o carreto com os móveis e as malas de Vanessa, sua namorada, e trazê-la para morar com ele, separou os objetos mais delicados e os levou num Uber. Precisava se certificar de que nada ia quebrar nem amassar. Nas costas, levava uma mochila. Num braço, uma caixa com plantas. No ombro, um violão. No outro braço, um quadro.
Suri — a cadelinha de Vanessa — já tinha se mudado para a nova casa havia três dias. Quando o carro parou em frente ao portão, ela largou-se a latir, festiva e alarmante. Aquele frenesi de cachorro com coisa nova. Leonardo, desacostumado, tentou dar conta do que carregava e ainda aquietar a vira-lata, que corria e pulava em cima dele desesperadamente. Tirou tudo do carro antes de dispensar o motorista. Mas, inábil malabarista, derrubou as plantas, espalhou a terra pelo chão, sujou tudo e largou o que tinha nas mãos para arrumar a bagunça.
Se já não bastasse o trabalho que dá, na mudança também teve chuva. Enquanto ele ajeitava a casa e abria espaço para os móveis que chegariam no dia seguinte, lá fora caía um pé d’água.
Pouco tempo depois, quando a tempestade passou, o homem deu por falta de alguma coisa. Não sabia a princípio o que era, mas notava uma ausência. As plantas estavam ali, o violão também e a cachorra se acalmara. “Era o quadro”, lembrou. Faltava o quadro de Vanessa. “Procurei pela casa e nada. Tentei lembrar onde o tinha visto pela última vez. Foi na calçada, quando desci do carro. Não estava mais lá, alguém achou que era descarte e levou. Fiquei sem chão.”
O presente
O funcionário público Leonardo Rodrigues, 41, e a programadora cultural Vanessa Reis, 38, se conheceram há 20 anos, na USP (Universidade de São Paulo). Ele cursava História, e ela, Filosofia. Naquela época eram apenas amigos, e chegaram a dividir com mais uma pessoa um apartamento no conjunto residencial para estudantes. Não demorou muito para que o rapaz se mudasse dali. Foi morar com uma namorada, em outra casa. No lugar dele, chegou Flávia, amiga de Vanessa.
Formada em Letras, Flávia Santos, 36, é escritora, livreira e artista visual. Na época em que moraram juntas, presenteou a amiga com o desenho que ela mesma fez: um menino deitado, espremido, corpo desengonçado, pernas e pés longos, olhando de lado para uma borboleta pousada sobre sua orelha. Inspirada na infância dos poemas de Manoel de Barros, contrapôs leveza e dureza em preenchimentos com cores leves e contornos pretos fortes, feitos em giz pastel oleoso.
O menino com a borboleta no ouvido foi emoldurado e afixado numa das paredes do quarto de Vanessa. De lá, a acompanhou por onde ela foi. No último apartamento, por exemplo, tinha lugar privilegiado na casa: a sala, à vista de quem chegasse. Não era, notava-se, um quadro qualquer.
Há poucos dias, Flávia foi avisada: “perdi o quadro que você deu à Vanessa”, disse Leonardo, em mensagem, meio sem jeito. “Como é que se perde um quadro?”, pensou a artista. “Aí, ele me contou da história da mudança e de como tinha acontecido. “Não fiquei chateada porque ele perdeu o quadro. Eu fiquei chateada porque eu sei que a Vanessa gosta muito desse desenho.”
Tempo vai, tempo vem Em janeiro de 2019, Leonardo e Vanessa se encontraram para tomar uma cerveja e jogar papo fora. Sempre foram amigos, com encontros esporádicos e conversas recorrentes, mas naquele dia decidiram mais. Beijaram-se. Começaram a namorar, e em junho deste ano, decidiram morar juntos mais uma vez — agora, um casal com três filhos: dois, dele; uma, dela.
Quando entrou no apartamento de Vanessa para contar sobre o ocorrido, Leonardo armou-se de outro dos predicados taurinos. Foi determinado e nem mediu muito as palavras. A primeira coisa que a companheira respondeu foi: “Nossa, não vou te condenar, porque eu teria feito o mesmo ou pior.”
Procura-se
A rua enladeirada onde mora o casal fica exatamente na divisa entre Lapa e Vila Leopoldina, bairros da zona oeste de São Paulo. Um cemitério, duas ruas atrás, traça a fronteira invisível. Uma semana depois de ter perdido o quadro, por volta de 15 de junho, Leonardo seguiu ladeira abaixo colando cartazes em postes, pedindo ajuda para achá-lo.
“Você viu esse quadro?”, escreveu no papel, acima da foto do procurado. “Se você está com ele, por favor entre em contato. Enorme valor afetivo (tipo criança doente)”, acrescentou no apelo. A ideia partiu de Vanessa. “Pensamos nos lambe-lambes que vemos pelas ruas, com anúncio de criança doente nos apelos para resgatar cachorros perdidos”, explica a programadora cultural.
Passa pouca gente pelo local onde o quadro foi esquecido, e essa é a esperança do casal. Pregaram um aviso em frente à casa onde moram e torcem para que a pessoa perceba os papéis espalhados e devolva a ilustração. Até na porta do posto de saúde do bairro tem cartaz — para aproveitar o movimento intenso de quem vai tomar a vacina contra a covid-19.
Nessa espera, até agora só receberam duas ligações: a do TAB e a de uma moradora das redondezas que se compadeceu e quis ajudar nas buscas. Na hora da chuva (em que o quadro estava esquecido na calçada), essa senhora passou de carro com o marido pela casa de Leonardo e Vanessa. Viu o objeto esquecido e achou bonito. Pensou em descer para pegá-lo, mas o marido não quis que ela se molhasse; vizinhos também incluíram o pedido entre as mensagens de grupos de WhatsApp. Na rua, o casal já é conhecido como “o pessoal do quadro”.
Em breve, eles intensificarão a campanha. “Acho que fiz poucos cartazes”, comenta Leonardo. “Vou imprimir mais, e agora colar do cemitério para cima”. Apesar do contratempo, no entanto, toda essa história de preocupação tem um lado bom, afirma ele, porque mostra logo no início de um relacionamento que nem tudo são flores — e que em toda mudança há lá suas lições.
Imagem: Reprodução/site UOL. A ilustração “Menino com a Borboleta na Orelha” foi feita por Flávia Santos, amiga de Vanessa
Imagem: Reprodução/Fernando Moraes UOL “Leonardo e Vanessa espalharam cartazes pelo bairro à procura do quadro perdido”
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