COTIDIANO

Invisível, dor de morador de rua é mapeada em trabalho inédito em SP

Estudo da faculdade Albert Einstein mostra que maioria se queixa da coluna

Publicado às 9h40

Folha de SP

Deitados no chão duro e frio do canteiro central da rua Amaral Gurgel, centro de São Paulo, eles se surpreendem quando a repórter pergunta se têm alguma dor. “Ninguém nunca me perguntou isso”, diz Julio Cesar, 42. Os amigos Nelson, 37, e Warlly, 40, concordam com a cabeça.

Julio passou a viver nas ruas há três meses. Queixa-se de dor na coluna. Warlly, sete anos de rua, sente dores na cabeça, no estômago e nos pés.

Nelson é o veterano, mora nas calçadas há 18 anos. As articulações e os dentes doem bastante, mas ele diz que isso é “fichinha” perto da dor emocional. “Essa é a pior de todas. A dor do desprezo, da humilhação”, afirma ele, que, assim com os amigos, é dependente de crack.

As queixas do trio corroboram os resultados de um estudo inédito sobre a dor do morador de rua divulgado em evento do Hospital Albert Einstein e da Case Reserve University, de Cleveland (Ohio, EUA). É o primeiro trabalho no Brasil do gênero.

“Até dentro dos hospitais existem áreas em que a dor é negligenciada, subtratada. Agora imagine a condição do morador de rua. Ninguém pergunta a dor que ele tem”, afirma Eliseth Leão, pesquisadora do Einstein e especialista em estudos sobre dor.

A pesquisa envolveu 69 moradores de rua que vivem na região da Sé (centro de São Paulo), que concentra 3.864 moradores, metade da população que pernoita na rua em São Paulo, estimada em 7.335 pessoas.

Outras 8.570 pessoas dormem em abrigos, segundo censo de 2015.

A população alvo era de 401 pessoas que frequentam uma unidade de saúde do centro. Dessas, 367 foram encontradas, mas, para evitar viés nos resultados, a maior parte (298) foi excluída do estudo por estar em delírio ou efeito de álcool e/ou drogas.

Segundo a pesquisa, 95% dos entrevistados relatam dor aguda, especialmente na coluna, e convivem com ela por cerca de oito anos.

Há uma alta interferência da dor em todas as atividades de vida diária: do sono (87%) ao relacionamento com outras pessoas (67%).

Apenas uma parcela minoritária (35%) faz tratamento com medicamentos para tratar a dor, mas a maioria (66,7%) tem dificuldade para seguir a prescrição médica.

“A gente trata a dor é com cachaça e pedra [crack] mesmo. Não cura, mas alivia”, diz Warlly, mostrando os pés com rachaduras, enquanto acaricia o vira-latas Pretinho.

DOR INVISÍVEL

A invisibilidade da dor dessa população de rua que já sofre de tantas outras violências (física, psicológica, sexual) motivou a enfermeira Ariane Graças de Campos a pesquisar sobre o tema na sua dissertação de mestrado na Faculdade de Ciências em Saúde Albert Einstein (SP).

O perfil da sua amostra foi majoritariamente composta por homens não brancos, com baixo grau de escolaridade e que habitam as ruas há 12 anos, em média.

Segundo a enfermeira, a dor dessa população é subdiagnosticada e subtratada. “Os profissionais de saúde não perguntam [sobre dor]. É como se ela não existisse, como se fosse inerente ao modo de vida deles”, diz ela.

A taxa de interferência da dor no sono, por exemplo, é uma das maiores do mundo de acordo com estudos internacionais sobre o tema.

Ariane afirma que a pesquisa é uma forma de oferecer subsídios aos profissionais de saúde para que percebam o quanto a dor interfere nas atividades e ofereçam cuidados efetivos e que respeitem o universo da rua.

Na Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, feita em 2008, 29,7% dos que viviam nessa condição no país afirmaram ter algum problema de saúde.

Quando precisavam de atendimento, 43,8% procuravam os hospitais e 27,4%, os postos de saúde.

“Os serviços de saúde têm que se adaptar às peculiaridades do viver do morador de rua, e não esperar que ele se molde às normas rígidas das nossas instituições.”

ACESSO

A enfermeira explica que são múltiplas as variáveis que interferem no acesso aos cuidados de saúde do morador de rua, como filas, longo tempo de espera e o preconceito de profissionais no atendimento, especialmente com as condições de higiene.

“Quando chegávamos com um morador de rua todo sujo em um hospital ou unidade de saúde, eles [profissionais de saúde] fuzilavam a gente com os olhos”, lembra.

Na sua opinião, uma questão importante é a inclusão do morador no seu cuidado. “Precisa discutir com ele o tratamento que é capaz de aderir. Não adianta prescrever remédio de seis em seis horas que ele não vai tomar.”

Às vezes, nem é remédio que a pessoa precisa. “Uma vez perguntei: o que você acha que melhorará a dor? Ele respondeu que era dormir numa cama. E fomos atrás de arrumar vaga em um abrigo.”

Segundo a pesquisadora, as dores emocionais também são inúmeras. Uma das que mais a impressionaram foi a história de uma mulher que era mantida prisioneira e estuprada por doze homens.

“Um deles ateou fogo no corpo dela. Só o rosto saiu ileso.”

A pesquisa de Ariane se transformou em um curso gratuito com quatro módulos de aulas em vídeo sobre como os profissionais de saúde devem abordar e manejar a dor nessa população de rua.

O material foi financiado pela Sociedade Internacional para o Estudo da Dor.

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