Publicado às 11h45
Folha de SP
O mundo da ópera não é dos mais confortáveis para minorias. As mulheres são geralmente as mais maltratadas, mas racismo e bulliyng não são incomuns. A ópera “A Flauta Mágica”, obra-prima de Mozart que tem uma das árias mais conhecidas do repertório lírico, consegue juntar tudo isso em suas duas horas e meia.
Pois quem for assistir à montagem da Associação Coral de São Paulo, que estreia neste sábado (10), no Teatro Bradesco, vai encontrar uma versão mais politicamente correta da obra, que, vale lembrar, foi composta em 1791.
Há pelo menos três passagens críticas. Uma delas é o dueto entre a mocinha Tamina, filha da Rainha da Noite, e Papageno, um passarinheiro que sonha em encontrar uma namorada. Tamina está apaixonada por Pamino, príncipe encarregado pela Rainha da Noite de resgatar sua filha, usando truques mágicos, das mãos de Sarastro, líder e sacerdote de uma ordem secreta.
“Claro que Mozart não está frisando que o amor tem que ser entre uma mulher e um homem, mas que a coisa mais sublime que existe é o amor entre duas pessoas”, diz o maestro Luciano Camargo, diretor artístico e presidente da associação. “Percebemos que poderíamos colocar também ‘mann und mann’ e ‘weib und weib’ sem nenhuma implicação musical.”
Para o regente, manter a frase inalterada é que deturparia o contexto da obra. A solução aqui foi das mais simples: em alemão, língua em que a ópera é cantada, homem e mulher têm apenas uma sílaba (mann e weib, respectivamente), então bastou trocá-las de lugar. “Ou seja, a gente muda para ficar o mesmo”, diz o regente.
Na cena em que os sacerdotes de Sarastro alertam Tamino e o Papageno sobre os perigos das “armadilhas femininas”, a alteração foi mais incisiva: “Weibertüken” virou “Bösertüken”, ou “armadilhas do mal”. Segundo Camargo, quando o Rodolfo García Vázquez, diretor cênico do espetáculo, leu o texto, falou que era “um desrespeito muito grande com qualquer mulher”.
Uma saída seria perverter o sentido do discurso, alterando-o para um registro irônico, mas isso seria uma “perversão da própria música”, de acordo com o regente.
Monostrato, personagem mouro que se autodenomina ruim e feio, supostamente pela cor de sua pele, passa a cantar “um servo feio” em vez de “um negro feio” (“weil ein Schwartzer hässlich ist” foi substituído por “weil dieser Dïener Hässlich ist”).
“Acho importante, nos dias de hoje, no Brasil de hoje, no momento político e social em que a gente vive, reafirmar princípios que estão inclusive na nossa Constituição”, diz.
Os diálogos que entremeiam as músicas também foram cortados, restando o mínimo possível para o entendimento da obra. “Para uma plateia que não entende alemão, e que não é necessariamente fã de ópera, seria cansativo e esteticamente desinteressante. A ideia é falar o máximo através de gestos, e não de palavras”, explica Camargo.
Já antecipando as possíveis críticas que os amantes puristas farão à montagem, Camargo diz estar acostumado. “Sei que não vou nunca agradar a todos, mas minha consciência como artista está tranquila, por trazer algo além de uma melodia bonita.”
A apresentação também é uma oportunidade de ver em ação o coro voluntário da Associação, composto por mais de 2.100 cantores amadores “no melhor sentido da palavra, de quem faz por amor”, ressalta o regente.
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