Publicado às 9h30
Folha de SP
A morte de um casal com dois filhos —um de 4 anos e outro de 10 meses— em um incêndio dentro de casa na zona norte de São Paulo já seria suficiente para abalar parentes, colegas e vizinhos.
Nove dias depois da tragédia, um novo drama: familiares não conseguem enterrá-los, e a posição do IML (Instituto Médico Legal) não deixa dúvida: podem ter que esperar até um mês para a liberação dos restos mortais de três das quatro vítimas e a realização da cerimônia de despedida.
“São três dores: a da perda, a da espera, e, quando retirar [os corpos], vai ter outra, a da despedida”, afirma Rodrigo, irmão de uma das vítimas, Célia, 31, que dormia com seu marido, Anderson, 35, e os filhos Lucas, 4, e Erick, de 10 meses, no momento do fogo, à 1h30.
A polícia ainda apura as causas do incêndio, mas a suspeita é que ele tenha sido provocado por um curto-circuito em ligação elétrica irregular na comunidade da Tribo. Seis barracos foram destruídos.
Os corpos ficaram carbonizados e, por isso, a Secretaria da Segurança Pública afirma que foi necessária a solicitação de exame DNA, que pode demorar até 30 dias.
No incêndio da zona norte, os vizinhos conseguiram escapar, mas dizem que uma lona no barraco da família que morreu pode ter agravado a fumaça e dificultado a fuga.
O périplo para a liberação dos corpos envolve diversos parentes. Rodrigo foi ao IML para prover amostra de DNA e recebeu uma previsão inicial de ao menos 15 dias para a identificação. Depois, a mãe, Teresa, foi com outra filha. “O rapaz falou ‘não existe isso de 15 dias, isso aqui é de um a seis meses’. É um absurdo. Como você pode deixar uma família inteira aí na geladeira durante seis meses?”, questiona.
“Só aumenta a angústia pela qual a família está passando”, diz, sobre a demora e as informações desencontradas.
“O material genético colhido está em análise no Núcleo de Biologia e Bioquímica, que deve concluir os laudos em cerca de 30 dias”, diz a Secretaria da Segurança Pública, ligada à gestão Márcio França (PSB).
A líder comunitária da favela da Tribo, Irani da Silva Guedes, 44, demonstra indignação com a demora. “Já não tirou aquilo que precisava para fazer [a análise do] DNA? Enterra, se precisar desenterra. Pelo menos descansa a família.”
A Tribo fica em uma área de 461 mil m² de terreno acidentado e íngreme no Jardim Damasceno, às margens da Serra da Cantareira. Vivem ali cerca de mil famílias, aproximadamente 5.000 pessoas, segundo Irani. Destas, a maior parte em casas irregulares de alvenaria. O espaço onde viviam Célia e Anderson com as crianças era uma área de encosta com barracos de madeira.
O local é de difícil acesso. “Nessa rua não entra caminhão de lixo. O bombeiro teve que vir por baixo. Tudo fica difícil para a gente lá em cima [do morro], não tem acesso à nada”, diz a líder comunitária.
O Corpo de Bombeiros informou ter recebido a chamada às 2h32 no dia do incêndio e chegado à encosta em seis minutos. Foram enviadas 16 viaturas e utilizados 100 mil litros de água para controlar as chamas em cinco minutos.
O local segue com os destroços da tragédia. Em meio aos escombros chamuscados ainda é possível encontrar peças de vestuário infantil, como um sapatinho provavelmente de algum dos meninos.
“O Lucas estava numa fase ótima, vivia brincando, ia para a quadra. O Gordo [Erick] já estava falando ‘papai’ e ‘mamãe’, engatinhando tudo”, conta a vizinha Nicole, que cuidava das crianças enquanto os pais estavam no serviço.
“Eles eram trabalhadores”, conta a mãe de Célia, Teresa, 56. “A Celinha voltava do serviço morrendo de saudade deles”, diz dona Teresa. Célia trabalhava como faxineira havia três anos no bairro do Limão. Anderson, que era conhecido como Pequeno, era auxiliar de pedreiro.
O corpo de Anderson era o que estava em melhor estado e acabou liberado. Os de Célia e das duas crianças ainda estão sob análise no IML.
Irani, a líder comunitária, presenciou o recolhimento dos restos mortais. “Fiquei quatro dias sem conseguir comer e dormir”, conta Irani.
Para a família, só interessa poder se despedir com dignidade. “Já faleceram, então libera para a gente fazer o enterro, não é? A gente não está pedindo muito”, diz Teresa.
Adicione Comentário