COTIDIANO

Ex-doméstica, primeira comandante da guarda de SP quer intensificar proteção à mulher

Elza Paulina já teve que esconder a filha em banheiro do trabalho e é entusiasta do diálogo

Publicado às 9h40

Folha de SP

Primeira mulher nomeada comandante da maior guarda do país, Elza Paulina de Souza, 52, viveu a desigualdade de gêneros durante toda sua trajetória. Mãe solteira, chegou a ter que esconder a filha pequena em um banheiro do seu posto de trabalho por não ter com quem deixá-la.

Trabalhou como empregada doméstica e dirigiu trator na roça. Entrou na Guarda Civil Metropolitana de São Paulo no ano em que a instituição foi criada, 1986, época em que as agentes tinham que usar uma saia que limitava os movimentos e não podiam andar armadas.

Alta e com uma postura retilínea, Elza é uma figura imponente. Diz que nunca foi conhecida por ser “meiguinha” —​”muito pelo contrário, não passo a mão na cabeça, sou meio bruta, tropeço nos ambientes”.

Essa postura, ressalta, não tem a ver com uma maneira de marcar território em uma instituição historicamente masculina. “Não preciso cuspir no chão para mostrar que sou mais capaz que um homem”. Formada em fisioterapia, medicina oriental e filosofia, ela diz usar o conhecimento e o diálogo como maneiras de refletir sobre o espaço e a relação com o outro.

E para pensar no lugar das mulheres dentro da sociedade e, mais especificamente, da guarda.

“Temos dois atores: o sujeito e a coisa. O sujeito é o homem, a coisa é a mulher. Quem fala para a coisa que ela é a coisa? O sujeito. Ele sempre definiu o que a coisa iria fazer. Hoje, entender que somos também sujeitos é um novo processo. Sou sujeito de direito e posso ser tudo o que quiser”, diz.

Sua nomeação, em 8 de março, pela gestão Bruno Covas (PSDB), representa um avanço na luta em defesa dos direitos da mulher —ela estava à frente do programa Guardiã Maria da Penha que,  em parceria com o Ministério Público, combate a violência doméstica no município.

Elza nasceu no interior de São Paulo, na área rural de Marília (a 450 km da capital). Os pais eram pequenos lavradores e tiveram cinco filhas. “Somos uma família de cinco mulheres, então fazíamos o papel de homem. Tocar gado, carpir, dirigir trator. Eu já ia para a roça criança”, conta.

Após perder uma colheita inteira, a família se mudou para a parte urbanizada da cidade, onde adotaram um menino. “Com 12, 13 anos, eu tinha certeza de que não queria ficar ali [no interior]. Tinha um Tiro de Guerra [instituição do Exército] perto da minha casa, eu via os meninos fardados passando e pensava ‘por que a gente não pode? Quando crescer quero ser isso'”.

Aos 19, foi para São Paulo e prestou o concurso para a recém-criada Guarda Civil Metropolitana. Integrou a primeira turma do Corpo Feminino da GCM. “Quando a gente ia para a rua naquela época falavam que parecíamos aeromoças. Ficávamos separadas do masculino, não fazíamos algumas atividades que eles faziam. Não podíamos andar armadas. Andávamos de saia e sapatinho”, lembra Elza.

As guardas mulheres eram designadas apenas para ações comunitárias, como atuar nas portas de creches e escolas. Com o tempo, a diferença foi se diluindo. “Lembro de não conseguir pular um muro durante uma ocorrência porque estava de saia.”

A comandante lembra que no começo da carreira não tinha onde deixar a filha enquanto estivesse no trabalho. “Aí eu escondia ela dentro de um banheiro da unidade para poder ficar [com ela], porque não tinha um homem. E às vezes a chefia não é muito tolerante, a pessoa vira para você e fala ‘ninguém mandou ter filho’”, diz Elza, que hoje é avó.

As diferenças aparecem também na rotina diária. “O ‘outro’ levanta, põe a roupa e vai. Quero me maquiar, prender meu cabelo, arrumar um horário para fazer a unha. A questão da saúde também é algo com que a gente se preocupa [mais]. As horas de sono ficam um pouquinho menores”, diz.

Elza assume uma instituição com problemas estruturais. Com 6.249 agentes, São Paulo conta com a média de um guarda para cerca de 2.000 habitantes. No Rio de Janeiro, é um para cada 867 pessoas. Ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo, Benedito Mariano disse, em 2016, que o número ideal de guardas na cidade seria de 15 mil.

Esse número, hoje, está muito distante da concretização. A comandante diz acreditar, por outro lado, que até o final de 2020 será possível realizar concursos para conseguir mais 1.000 agentes para a instituição.

Além do número reduzido de funcionários, a GCM sofre com equipamentos antigos e em más condições de uso, dos quais os guardas queixam-se há diversas administrações. No entanto, Elza acredita que a atual gestão tem mostrado evolução nesse aspecto.

“Tivemos, nos últimos dois anos, melhora bastante grande na compra de materiais, armamentos e sistemas. Evoluímos muito na comunicação, em programas. Na cidade de São Paulo, temos dois programas que se tornaram fundamentais, que são o SP + Segura e o City Câmeras”, diz, sobre aplicativos de monitoramento do município.

No programa Guardiã Maria da Penha, Elza foi a responsável pela instalação de uma espécie de botão de pânico virtual no aplicativo SP + Segura, da Secretaria Municipal de Segurança Urbana. “Eu falei para o desenvolvedor aprimorar, porque eu não tinha como dar o botão do pânico para as meninas, mas eu tenho o aplicativo”, diz. “É muito mais prático. O botão ela pode esquecer. O celular ela não esquece”, exemplifica.

Pelo aplicativo, as mulheres vítimas de violência que estão sob medida protetiva podem acionar a GCM rapidamente caso o agressor descumpra a medida. O maior desafio neste campo, segundo Elza, é a mulher se reconhecer como vítima. “Depois que a mulher faz a denúncia o parceiro volta e ela não quer manter [a denúncia]: ‘Olha, ele só bateu em mim, mas é o pai dos meus filhos, é ele quem paga as contas’. E às vezes o agressor também não se vê como agressor.”

Por isso, diz a comandante, as equipes da Guarda são treinadas para um acolhimento humanizado. “É importante preparar e conscientizar o meu agente para atender humanamente qualquer situação de violência, principalmente contra a mulher, contra a criança, contra o idoso”, afirma.​

Mais pragmaticamente, diz que como comandante vai promover a aproximação da Guarda e da Polícia Militar no combate à violência contra as mulheres.

“Vou trabalhar a violência da mulher como um todo. Vamos trabalhar bem próximas de Delegacias de Defesa da Mulher. Teremos que dar apoio nessas delegacias, vamos auxiliar as delegadas no acolhimento e no encaminhamento à rede. Se necessário, também faremos a condução de mulheres vítimas de violência doméstica”, explica.

Em que pese o compromisso com a instituição, a comandante recusa-se a ter a cabeça totalmente dominada pela Guarda Municipal. Ela empolga-se ao falar de seus interesses variados.

“Fisioterapia para mim é realização. E eu me encantei pela medicina chinesa. É toda uma filosofia no sentido de sentir-se bem e fazer o bem para os outros. É maravilhoso saber de aromaterapia, acupuntura. A cura pelo toque”, diz, projetando-se como uma professora de pilates depois da aposentadoria.

A satisfação também vem da culinária. Fazendo “comida do povo”, sem afetações, preparando uma feijoada para receber amigos.

“Adoro receber pessoas. E cozinha é uma terapia: eu, eu mesma e minhas panelinhas. Ouvindo um som. Gosto de música cigana, fiz curso de dança cigana já. Sou essa coisa meio esquisita assim.”


RAIO-X

Elza Paulina de Souza,​ 52 anos, está na GCM desde a criação da Guarda, em 1986. Integrou a 1ª turma do Corpo Feminino da instituição e nos últimos anos atuou na gestão integrada da GCM, à frente do programa Guardiã Maria da Penha, que combate a violência doméstica. Elza é formada em fisioterapia e filosofia, com pós-graduação em medicina tradicional chinesa. Desde o dia 8 de março, é a comandante-geral da GCM.

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