EDUCAÇÃO

Jaraguá: Lei que permite celular em aula dá ‘trégua’ para professores e alunos

Escola no bairro tem tentado lidar com a presença dos celulares em sala de ano há anos

Publicado às 9h17

Folha de SP

Depois de anos de discussão foi aprovada uma lei estadual que terminou com a era da proibição do uso de celulares em salas de aula e permitiu seu emprego em atividades didáticas. Seus efeitos? Basta uma visita, ainda que rápida, a uma escola para perceber que a lei é quase nada diante de uma realidade conspícua –e, sobretudo, tensa.

A Escola Estadual Ministro Oscar Dias Correia fica no Jardim Bandeirantes, na região do Jaraguá, zona norte de São Paulo. Foi inaugurada em 2006, em meio a mudanças intensas.
“Até uma década e meia atrás era um lugar isolado, muito adiante da estação Jaraguá, da [linha de trem] Santos-Jundiaí. Levava meia hora a

pé para chegar de lá até nossa casa, tudo em caminho de terra. Mas era onde meu pai, que era motorista de ônibus, e minha mãe, empregada doméstica, tinham dinheiro para comprar terreno e construir uma casa”, diz Rodrigo Matos.

Ele mesmo é parte das transformações recentes. Muito empurrado pelos pais para seguir no caminho da educação, terminou o colegial na escola pública municipal do bairro, estudou ciências biológicas, formou-se, prestou concurso para a nova escola, onde dá aulas de ciências para o ensino fundamental e de química no ensino médio.

Nessa altura da vida as coisas já eram bem diferentes. Conjuntos habitacionais inaugurados em sequência, asfalto para a maioria das ruas, comércio relativamente movimentado (embora ainda faltem itens básicos como uma agência bancária), linhas de ônibus e uma nova estação de trem da Santos-Jundiaí trouxeram uma cara diferente ao bairro –e 1.200 alunos para a escola, distribuídos do primeiro ciclo do fundamental até a educação noturna de adultos.

Não foi só o bairro que mudou neste tempo. Maria de Fátima Soares Abreu é diretora da escola há seis anos. Nesse período viu se acentuar uma tendência que nota há uma década: “Antes a família educava em casa e esperava que a escola complementasse com cultura. Hoje a pressão é tanta que a família espera que a escola cuide, que a escola eduque, que a escola dê cultura. Nesse bojo veio a questão do celular”, diz.

O aparelho entrou na sala de aula porque é um instrumento de comunicação que permite aos pais cuidar. Passou a ser entregue aos filhos para que recebessem notícias uns dos outros. E, nessa primeira função, tornou-se essencial para as comunicações de emergência da escola –embora exista ainda uma lei que proíbe tal atividade.

Cada vez que alguém precisa ligar para um celular é obrigatória uma justificativa por escrito –assinada pela diretora. São, em média, 400 por mês, tornando o aparelho fundamental.
O império da necessidade justifica a presença do aparelho nas mochilas. Mas daí a outros usos pelos alunos-proprietários é um nada.

Lorhaynne Xavier recebeu seu primeiro celular da mãe há cinco anos, quando tinha 11 anos. Empregou uma única função além do uso como telefone: “Era dos pequenininhos, mas ótimo para música. Eu adorava, escutava o tempo todo’.

Mas o aparelho caiu no chão e ela acabou com um Galaxy, que veio com WhatsApp. Tudo mudou: “Fiquei frenética. Usava o dia inteiro. Fui ficando bastante viciada naquilo, usava na escola escondido e em casa sem parar. Ficava trocando mensagens com grupos, editando música, indo no Face. Acabou que tive um problema de vista”, diz a menina.

“Só melhorou quando minha mãe colocou limites: de manhã pode um pouco, de noite outro pouco”.

O controle gerou resultados. Apareceu para fazer as lições da escola –”antes não dava tempo”–, foi possível começar a atender aos apelos dos professores para tirar fones ou se afastar do aparelho. Mas, no tempo permitido, a diversão está toda com ele:

“Deu o sinal, a gente fica frenético. Junta a roda, quem tem crédito vai para o meio, a gente fica vendo meme direto. Tudo combinado: cada semana é um que cede os créditos. Se não tem, a gente fica brincando de esconde-esconde no Minecraft off-line”.

No ensino médio, aos poucos foi acrescentando aplicativos mais sérios, alguns capazes de levar a pensar num futuro profissional. Coisas como um programa para lidar com calorias, que acendeu o desejo de estudar nutrição. Com ele vieram simulados para Etecs ou para o Enem, que precisa prestar neste ano.

LUTA DIÁRIA

Essa melhoria é resultado de uma luta diária dos professores. Daniela Cacure, professora de história, que o diga:

“Nosso modelo de escola não está preparado para a tecnologia. Para seguir a lei nos tempos da proibição, a gente só tinha como instrumentos giz, lousa e saliva. Tínhamos de policiar os alunos para não usar fones durante as explicações, não entrar na rede. Era uma guerra diária.”

Os meios legais para atrair atenção eram limitados: “Como a rede da escola não é aberta para os alunos, só dá para pedir pesquisas no celular deles. Mas apenas uns poucos têm planos de dados, de modo que isso criava discriminação. Podia -mas muito de vez em quando”.

Elcio Carlos Dantas, professor de biologia, é o encarregado pela sala. Organiza o cronograma para cada professor, prepara os computadores, busca programas didáticos para as matérias, monta banco de dados de experiências bem-sucedidas. Mas reconhece: “Na ausência de monitores que possam ajudar o professor no meio do movimento, fica tudo pouco produtivo”.

A clara limitação dos meios oficiais foi fazendo com que, mesmo antes da aprovação da lei, os professores fossem se rendendo ao império do celular. Simone Capuano, professora de artes, começou a mudar de atitude com os alunos do ensino médio: “Propus a um grupo um trabalho sobre jingles. Eles gravaram alguns com os pais, acharam na rede. Criaram um jingle, gravaram no celular, editaram em casa, ficou ótimo. Comecei a perceber como empregar o aparelho para ensinar”.

Katia Josefa, professora de inglês, foi mais longe: “Incentivo todos a baixarem um dicionário virtual para deixarem de lado o Google tradutor. É bem mais completo que o papel, traz som e o contexto. Permite ao aluno saber mais que o som de ‘subway’, por exemplo: ele vê o metrô, entra nos detalhes do contexto”,diz.

“Mas em classe tenho de ficar de olho o tempo todo, senão logo vira joguinho e rede. Além disso era chato fazer isso quando tinha uma plaquinha na sala dizendo que o uso era proibido”.

Regiane Oliveira Santos, professora do ensino básico e de filosofia no médio, além de moradora do bairro, acabou encontrando uma solução de convívio, olhando mais para a realidade dos celulares do que para a leitura da placa:

“Comecei com os mais velhos, arranjando jogos de lógica como caça-palavras ou sudoku e permitindo que eles jogassem em horários determinados, antes das redes sociais. Depois pedi para tocarem certas músicas para discutirmos as letras. Assim acabei com o negócio do proibido, o mal-estar da sala”.

O passo adiante veio em 2014, quando decidiu criar uma situação contratual:

“Criei um grupo de WhatsApp para minha classe de ensino médio. Conversei com os alunos para fazermos as regras. Chamei os pais, conversei mais. Fizemos um acordo assinado entre todas as partes. Ajudou muito. Os alunos que faltavam recebiam material, os pais viam o que estava acontecendo e ajudavam, eu mandava mensagens para incentivar as pesquisas fora da sala de aula. Muitos trabalhos começaram a ser feitos inteiramente na rede.”

EXPOSIÇÃO

Débora Siqueira, professora de geografia, também achou suas alternativas. Organizou um grupo no celular para um trabalho coletivo inovador: os alunos toparam trabalhar além do horário da aula para fazer uma exposição que misturava futebol com preservação ambiental.

O ponto alto foi uma maquete feita a partir de plantas técnicas do Maracanã que um aluno conseguiu, feita com material reciclável. Assim foi reavaliando a realidade : “Os alunos têm muita informação. Mas informação rasa, superficial. Toda vez que precisam ler um texto literário ou analisar, sofrem. Escrevem como falam, não conseguem entender a lógica da linguagem escrita. Cada vez que dou um texto mais complexo é uma choradeira só, muitos fogem. Fica difícil preparar para desafios formais como o Enem”.

Claudia Zanchetta, orientadora pedagógica da escola, conhece bem as forças que levam à informação rasa:

“O problema em geral explode na adolescência. O objetivo dos alunos passa a ser o de ter mais amigos na rede, de ser mais popular. Os métodos para ganhar curtidas na escola incluem coisas como empilhar cadeiras, fotografar e mandar mensagem dizendo que não foi pego –e ele pensa: ‘Eu sou o cara’. Escuta música alto, manda mensagem para o aluno que está prestando atenção. É difícil fazer eles entenderem os desafios da cidadania e do mundo formal”, afirma.

O caminho contrário, dos alunos para os professores, também é difícil. Alguns alunos conseguem encontrar informações complexas com ajuda do celular. Kaio Dinis Miranda, 16, lista a jato uma série de conhecimentos que obteve sozinho:

“Estudei ufologia, filosofia, inglês. Teoria da origem de Anaximandro, Tales de Mileto, Anaxágoras, os estudiosos do Arché. Bastante de atomística, das razões da organização da matéria.”
Seguindo o caminho da rede, acabou deixando outros de lado: “Na escola aprendi bem pouco, ela tem um repertório bem limitado e eu quero expandir muito. Assim eu desanimo. Acaba que, em vez de eu copiar, deixo de lado. Quando eles me pedem o caderno não tem nada, porque está tudo na minha cabeça”.

A diferença entre o muito que está na cabeça e o pouco que está no caderno, o informal da informação e o formal do conhecimento, acaba cobrando seu preço: apenas neste ano ele pegou sete recuperações.

Maria de Fátima Soares, a diretora, entende essa dificuldade pela experiência. Ela diz que até a quinta série o aluno tem um professor só, que sabe o nome de cada aluno e tem mais relação com os pais.

“Raramente o celular é um problema nessa fase. Na sexta série tudo muda de repente. São oito ou nove professores que mal sabem o nome do aluno, não perguntam se ele está com dor de barriga. Os pais ficam com muito mais dificuldade para acompanhar. Então ele fica sozinho e aturdido, entrando na adolescência”, afirma.

“Neste momento o celular fica muito mais importante, ele usa mais a rede, a classe fica mais barulhenta, as publicações muitas vezes são ofensivas. Só quando vai chegando ensino médio, a pressão pelo trabalho ou pelo vestibular, a entrada no mundo adulto, as coisas voltam a melhorar”, completa.

Curiosamente essa descrição coincide com o desempenho da escola –que está um pouco acima da média do ensino de São Paulo.

A Ministro Oscar Dias Correia teve 71% de adequação em português na Prova Brasil de 2015 –superando a média do Estado de São Paulo (65%) e da rede pública estadual (62%). O mesmo aconteceu em matemática.

Já o desempenho na fase que a diretora considera problemática segue a mesma tendência. A escola atingiu apenas 29% de adequação na nona série –contra 30% do Brasil, 33% de São Paulo e 28% da rede pública estadual.

Este é o buraco negro temporal da guerra do celular. Para superá-lo, Rodrigo Matos vê a profundidade de um propósito:

“Sou do bairro. Luto para que essa escola não seja nunca um depósito, um lugar onde o pai larga o filho porque não sabe como ele está aprendendo. É difícil fazer do celular uma ferramenta pedagógica, usá-lo para formar uma consciência, mesmo que seja para muitos anos depois. Mas essa é a guerra que tem de ser vencida”, diz.

 

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