Publicado às 9h30
Folha de SP
Ligeiro e nasalado, o português paulista tem pressa. Atropela os plurais das frases e suprime o “lh” das palavras.
Em São Paulo se toma dois café com dois pão na chapa por quinze real. E filha, milho, velho e mulher são reduzidos a fia, mio, véio e muié.
Ainda que incomodem os ouvidos mais sensíveis, esses usos da língua têm origem na mistura do português dos colonizadores com algumas das 350 línguas indígenas que existiam no território brasileiro à época do descobrimento —hoje são cerca de 180.
A história, as curiosidades e a diversidade de sotaques da língua portuguesa são tema do projeto especial da Folha “O Tamanho daLíngua”, publicado nesta segunda-feira (23).
“Quem se debruça sobre as origens de São Paulo vai se deparar com a enorme influência do indígena nesse começo de cultura e civilização que se estava estabelecendo neste pedacinho ignoto e longínquo da colônia portuguesa”, explica o jornalista Roberto Pompeu de Toledo, autor de “A Capital da Solidão” (Objetiva), sobre a formação daquela que viria a ser a maior cidade da América do Sul.
O cruzamento do idioma de Portugal com o tupi deu origem à chamada língua geral, utilizada no cotidiano da nova colônia até a segunda metade do século 18.
Uma de suas marcas, que hoje caracteriza o português paulista, era o “r” retroflexo, também conhecido como “r” caipira. Ele substituiu o “r” chiado dos portugueses, que os índios não conseguiam pronunciar. Na sintaxe indígena, o plural não redunda ao longo da sentença, o que poderia explicar o hábito paulista.
“A língua tupi não tinha ainda sons de f, l nem r, e por isso colonizadores se referiam a esses índios como sem fé nem lei nem rei”, conta a professora da USP Patrícia Carvalhinhos, especialista em toponímia, que investiga a origem dos nomes dos lugares.
“Em São Paulo falava-se português com fonética tupi. E isso foi tratado, por séculos, como uma maneira errada de falar”, aponta Ivan Vilela, professor da USP e pesquisador de cultura caipira.
Com a expansão dos bandeirantes pelo interior do país, essa língua geral de sotaque paulista, que se confunde com o idioma caipira, passa a abranger um vasto território: do Mato Grosso a Minas Gerais, de Goiás a parte do Rio Grande do Sul. Tamanha abrangência, no entanto, não impactou seu status.
“Na Constituinte de 1832, durante debate sobre onde seria instalada da primeira universidade do país, que veio a ser a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, a candidatura de São Paulo encontrou forte oposição e um de seus argumentos era a pronúncia local da língua”, conta Pompeu de Toledo, sobre documentos que encontrou em sua pesquisa sobre a cidade.
Numa ata, está registrado o discurso do deputado baiano José da Silva Lisboa (1753-1835) de que se “nas províncias há dialetos com seus particulares defeitos, é reconhecido que o de São Paulo é o mais notável”. Nos defeitos, que fique claro. E segue: “A mocidade do Brasil, fazendo aí seus estudos, contrairia sotaque mui desagradável”.
Para além da fonte indígena, o português paulista bebeu das imigrações que se concentraram no estado, sendo dos oriundos da Itália a mais notória. Há quem credite aos italianos a diferenciação que o sotaque da capital ganhou em relação ao do estado, desenvolvendo um “r” vibrante, que treme atrás dos dentes.
A esses imigrantes também se atribui a incorporação de duas expressões caricaturais dos paulistanos: orra e meu —hoje tão típicos quanto o mano e a fita, gírias típicas da cultura hip hop e periférica.
Foi nas periferias e na Grande São Paulo que ressurgiu o “r” caipira, cercando o “r” vibrante do centro expandido, que, segundo a professora da USP e pesquisadora Maria Célia Lima-Hernandez, vem perdendo terreno, numa espécie de volta às origens.
Ela questiona: “Podemos colocar os dois erres num ringue de luta. O povo da terra ganha em massa porque produz mais filhos, portanto uma herança mais numerosa do que a das elites. Qual será o ‘r’ que vence?”
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