Publicado às 9h20
Folha de SP
Um eucalipto de mais de 20 metros de comprimento jaz no chão de terra batida na favela da Tribo, na zona norte de São Paulo. Em uma ponta, a raiz para fora do solo aponta para o céu, em meio a escombros. Na outra, um barraco destruído pela queda da árvore, caída há quase um mês.
A ventania da tempestade daquele dia causou um efeito dominó nas árvores na comunidade. A primeira que caiu atingiu outra, que derrubou uma terceira. As quedas arrasaram dez casas. Uma pessoa morreu. Outros barracos foram invadidos pelas águas da chuva e 71 famílias ficaram desabrigadas.
O fato foi no dia 7 de março, quatro dias antes dos temporais que deixaram 14 mortos na Grande São Paulo. Mas passou despercebido na cidade que, no Jardim Damasceno, os barracos perderam para as árvores. O descaso do poder público e as condições geográficas do terreno, em disputa judicial, fazem desse bairro na zona norte da capital um local de risco para os cerca de 4.000 moradores.
A comunidade da Tribo é uma amostra das condições de vida de 11,4 milhões de brasileiros, que, segundo o IBGE, vivem em favelas. Na região metropolitana de São Paulo, são 2,2 milhões de pessoas nessa situação.
A favela fica em uma pequena parte ocupada de uma área de 461 mil m² de terreno acidentado e íngreme às margens da serra da Cantareira. Vivem ali cerca de mil famílias.
16h31 – Atualizando oco de queda de árvore na Rua Matim Perere, a equipe empenhada no transporte da vítima ao PS Cachoeirinha obteve êxito em reverter a Parada Cardiorespiratória! #193R
— 193-Bombeiros PMESP (@BombeirosPMESP) 7 de março de 2019
Estão presentes as condições que, conforme o IBGE, definem os “aglomerados subnormais”, as favelas: ocupação sem título de propriedade —o terreno está invadido desde idos da década de 1970—; irregularidade de vias, tamanho e formas dos lotes; e carência de serviços públicos essenciais, como coleta de lixo, rede de esgoto, rede de água, energia elétrica e iluminação pública.
“A gente mora assim não é porque gosta, é porque tem necessidade”, diz a vigilante Lucilene Carvalho Malaquias, 31.
A vulnerabilidade é flagrante nas construções irregulares, aglomeradas em uma área verde de encosta. Além das quedas de árvores, a favela está sujeita a deslizamentos, alagamentos e incêndios, uma vez que há um número considerável de casebres de madeira e a fiação é ilegal, portanto mais sujeita a curtos.
Em 2018, foi o fogo, não a água, que matou moradores. Um incêndio matou um casal e os dois filhos pequenos. “Nessa rua não entra caminhão de lixo. O bombeiro teve que vir por baixo. Tudo fica difícil para a gente lá em cima [do morro], não tem acesso à nada”, disse a líder comunitária Irani da Silva Guedes à Folha, na época. A dificuldade de acesso também foi relembrada agora, na demora do socorro ao homem que morreu, Valter Ferreira Miranda 44.
Na hora da chuva, Valter estava com a mulher, Adriana, e uma de suas netas pequenas em um dos barracos atingidos. Os dois foram internados às pressas, Valter com uma parada cardiorrespiratória. No Twitter, o Corpo de Bombeiros comemorou o sucesso em reverter seu quadro. Internado, Valter, no entanto, morreu horas depois por nova parada, na madrugada.
Vizinha, Lucilene estava em sua casa em meio às árvores na hora da tempestade. “Quando começa a ventar, eles [os eucaliptos] ficam naquele balé clássico”, diz, com um gesto rodando o dedo. “Sempre venta aqui, mas naquele dia estava fora do comum.” Por volta das 15h30, ouviu os eucaliptos caindo sobre os barracos de madeira. “Deu um estrondo. A gente sabe que está caindo mas não sabe a direção. Dá vontade de correr, mas a perna trava”, conta. “A gente se abraçou e ficou falando com Deus”, lembra Lucilene, que mora com dois filhos, de 14 e de 10 anos.
Filho de Valter e Adriana, Clayton, 20, conta que estava na casa de uma irmã —são três filhos e três netas— na hora da queda. “Deu para ver de lá”, diz o rapaz, tímido. Sem casa desde então, dorme na da namorada. “Elas [irmãs, sobrinhas e a mãe] estão todas na Cantídio [avenida próxima à favela]. Não voltam mais.”
Valter era conhecido na Tribo por ser prestativo. Era tido como um homem simples e reservado. “Tudo o que precisasse de manutenção, ele fazia”, diz Lucilene. Parte da árvore foi serrada pela Defesa Civil para manter a passagem que serve de ruela entre os casebres. “Foi muito difícil ver ele passar por aqui desfalecido”, lembra a vizinha.
Adicione Comentário