Publicado às 8h30
Folha de SP
A veterinária Ana Luiza Ferraz, 32, procurou a Polícia Civil de São Paulo para registrar uma queixa pouco comum no cotidiano policial: loira e de pele branca, a mulher denunciou ter sido vítima de discriminação racial por parte de uma de suas empregadas.
Os policiais registraram o boletim de ocorrência e, na sequência, instauraram um inquérito para apurar possível crime de injúria racial.
As supostas ofensas racistas foram feitas em abril, quando a funcionária, que havia se desentendido com a patroa, enviou, por engano, uma mensagem de áudio ao marido da patroa, na qual se referia a ela como “encardida do sul” e “cachorra do sul”.
A funcionária é uma mulher de 55 anos, branca, e moradora de Taboão da Serra, município da Grande São Paulo. A Folha tentou contato em cinco números de telefone registrados no nome dela, mas não conseguiu contato.
Após ser demitida, a funcionária passou a enviar outros áudios. A referência ao sul se dá em razão do estado de origem da patroa, o Paraná, e, também, ao sotaque dela, carregado de expressões sulistas.
“A grande maioria dos casos que acontece, que a gente tem notícia, envolve a raça negra, são os casos que mais acontecem mesmo. Mas nada impede que um japonês, ou indiano, enfim, também seja vítima desse tipo de comportamento, que sempre é um comportamento discriminatório”, disse o delegado Rubens Barazal, titular do 23º DP (Perdizes) .
A presidente da comissão da Igualdade Racial da OAB-SP, Maria Sylvia Aparecida de Oliveira, disse que é possível uma pessoa branca registrar um boletim de ocorrência por injúria racial, já que a lei não especifica raça ou cor da vítima. “Já defendi uma mulher negra, professora, que foi indiciada. A alegação era de que ela estava cometendo racismo contra uma aluna branca, mas nós conseguimos reverter isso ainda durante o inquérito”, disse ela.
Ainda segundo a advogada, esse tipo de queixa é pouco conhecido porque o branco, em regra, não se enxerga como pertencente a uma raça. “Ele não se vê racializado, porque acha que raça é só a do outro, do índio, do negro, do amarelo. Para ele, o ser humano universal é o homem branco, heterossexual e de religião judaico-cristã. Os outros é que são raças, os outros são os diferentes”, disse.
A queixa foi levada à polícia em abril pela advogada da veterinária, Roselle Soglio, que disse ter percebido um componente racial nas ofensas, já que o parágrafo 3º do artigo 140 do Código Penal qualifica uma declaração como injúria racial se “consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”.
A pena prevista é reclusão de um a três anos, mais multa.
Para o criminalista Augusto de Arruda Botelho, os xingamentos feitos pela funcionária caracterizam, em em tese, uma injúria racial. “O que é injúria? Injúria é um xingamento. Você xingar alguém é você injuriar alguém. Injúria racial é quando há um xingamento com critério de raça, etnia, cor, origem. É como chamar de branquela do sul, macaca, baiana, judeu”, disse.
Ainda segundo ele, é um ato de discriminação, mas menos grave do que o crime de racismo em si. ” O crime de racismo pressupõe uma discriminação a um grupo, e precisa haver uma ação específica contra esse grupo de pessoas. Por exemplo: eu proíbo a entrada de negros e japoneses no meu clube. Isso é um crime de racismo. Eu dificulto o ingresso na minha empresa de pessoas de origem judaica. Ele direcionado a uma coletividade que tem alguma relação a origem, etnia, raça, etc.”
Para a advogada Monica Sapucaia Machado, professora de direito constitucional e especialista em compliance de gênero, o xingamento neste caso específico configuraria, em tese, injúria comum, não racial. “O que é uma ofensa? O que é um xingamento? Aquilo que socialmente é considerado ruim. Então, na verdade, ao dizer sua ‘encardida do sul’, a ofensa é quanto a encardida e não ao sul. Se enquadraria em um caso de injúria? Talvez sim, mas injúria racial? Ser do sul não é considerado, socialmente, uma desvantagem”, diz ela.
“Não existe racismo reverso porque se entende como racismo você excluir uma população que já é vulnerável, que não está em igualdade de condições de competir com você. O que a gente precisa combater é a pessoa utilizar a história de cada um como algo pejorativo”, afirmou a professora.
Soglio, advogada da patroa, diz que os policiais do Decradi (delegacia especializada em crimes raciais) não queriam registrar o boletim. “Com muito custo foi registrado um boletim de ocorrência. Eles não queriam. Fiquei mais duas horas ali [na delegacia] para ser registrado. Tive de mostrar o documento e foto dela para acreditarem”, disse a advogada.
O caso foi transferido para 23º DP (Perdizes), onde um inquérito foi aberto. Ana já foi ouvida.
Segundo relatou a veterinária aos policiais, não havia problemas anteriores com a empregada, com quem tinha pouco contato. Ela afirma que a suposta agressora poderia estar chateada em razão de um empréstimo de dinheiro solicitado, que havia sido negado. A funcionária ainda não foi ouvida pela polícia.
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